Se houver um Você


 

Abra sua mente e seu caderno. Por um momento, eu espero, uma letra e outra, uma palavra se formar. Não para contrariar, filosofia não é isso. Suplício, talvez, pensar faz isso com a gente. Simplesmente. Voltei à mente. Mas hoje quero conversar com o coração. Ouça essa razão.

Música eu escuto, além do vento na janela e a gritaria na cidade. Prédio grande essa é, de muitos andares, todos separados num só conjunto. Elevo-me nele, desço em mim. Quanto mais alto subo, mais vou na profundidade desse não fim, para entender, enfim, as razões de ser. Viver mais que sobreviver, sustância de café da manhã que leva embora o cansaço, o descompasso, e permite a bobeira que faz rir alguém. Será que vem? Risada no fim da tarde, um quiproquó, quem sabe, brincadeira de infância na aglomeração adulta. Ah, vida astuta! Ela sabe ler. Foi o que eu me pus a entender.

Leio Agostinho nas páginas de Confissões. Deus me propõe uma sabedoria da existência, ciência que não dá conta, epistemologia acadêmica, mística presença. E eu tenho paciência de ouvir fé e razão, com muita fúria ou mansidão, desde que o coração me acalente. Não importa a idade, criança ou um pouco mais tarde, uma questiúncula vir no meio das liturgias, reflexões que é, amém. Ovo ou galinha, providência ou livre-arbítrio, gênesis ou apocalipse, pizza ou macarrão. Disso eu não abro mão, uma prece disso faço no presbitério. Sirva-me, quatro queijos, por favor, e um darwinismo de sobremesa. Isso foi a deixa. Inquisição quero não.

Saio rápido disso, discussão amiúde, e rabisco logo minha carta de alforria. Estudo a química, as reações orgânicas e dos povos, a citologia do destino, a quântica dos sentimentos, poesia melhor que dialética materialista. Converso com o professor, anoto tudo com muito amor, nas folhas em branco para uma tábula rasa não ser. Percebo o confronto, a disputa pelo poder, o oculto transparente e o cale-se de toda manhã. Assisto tudo isso à minha direita, e ouço, profundamente, meu lado esquerdo do peito. Uma vibração vermelha que não é sossego.

Mas nunca desisto, caminhando pela cidade, disso logo aviso, sou Galo até morrer. Aqui nas Minas Gerais fazemos poesia com a confusão, Drummond com sua pedra no chão, verso imortalizado do poeta. Guimarães me deu conselho, brincar com as palavras no sertão, para um ser tão, perigoso viver é. Sento-me na cadeira da biblioteca, pego Álvares e Kundera, e os outros apenas economia de mercado. Eles olham para mim estupefatos, lirismo que não paga conta, boletos impiedosos no fim do mês. Contudo, sei que sortudo não sou, enfrento-os com as armas que me restaram, sonetos de Moraes na ponta da língua. Eles riem e não entendem, deixando-me à míngua e sussurrando um réquiem, dizendo que Estado mínimo é a solução. Ninguém me deu razão, a não ser a Menina que tinha olhos para mim sem qualquer outra direção. Dei uma olhadela para ela e arrisquei cantarolar La-La-La-La, uma espécie de canção. Ela ouviu de mim isso, no que se transformou depois um amor daqueles de portão. Namoro pra lá de bão!

Diversão agora porque o agora voa. Tempo não temos e não temos tempo a perder. Vendemos o cronos por dinheiro e o dinheiro usamos para comprar o que não precisamos. Tantos relógios na vitrine, de prata, ouro e marfim, mas nenhum deles cronometra a saudade, memórias de uma idade que se foi. Sempre é depois que a gente sente, a dor e a ausência de alguém, quando estamos diante da vida procurando respostas. E eu bem queria dobrar a aposta, de dizer a todos nesse instante, que o melhor refrigerante são as lágrimas do reencontro. Ah, meu Deus, eu achei o ponto, descendo o elevador no andar de mim, meu íntimo revelado. Sagrado é o segredo desnudado, que ensina o que realmente vale ser dado, sorriso gratuito e despedidas com reticências. Isso é uma sapiência. Isso podia ser decorado. Vivido, na cidade, é o que eu acho.

Mas que diacho, sô, vida complicada que temos aqui. Povo bobo, Jesus de Nazaré, que não sabe o que é viver com menos questão. É condução para ir e voltar, salário para receber e pagar, sete dias pra bater cartão e horas para amar. Ver o mar de vez em quando, areia da praia só se for de busão, porque presença confirmada é reunião na firma. Assuntei isso uma vez, para amigos que trabalham comigo o dia, e recebi deles a anedota e a acusação de ser comunista. Ninguém entendeu a solução e, menos ainda, perceberam a prisão em que estavam. Manifesto meu deixei na saída e, assim, fui chamado de Quixote, então.

Como seria bom entender os porquês e não os usar mais. Formar o quebra-cabeça da existência e ter uma paz. Brincar de verdade nos jardins do paraíso, sem que haja um Éden para nos expulsar. Conciliar os paradoxos, unificar os contrastes, expondo tudo em uma arte, para ser contemplada e amada. Ter a sabedoria de um ancião e a paixão de um menino, a dúvida do adolescente, jamais a certeza do mesquinho, a loucura de um primeiro amor, o aconchego do último. Tudo isso em vários minutos que ensinassem como seria um bem viver, na cidade pra você ver, errar apenas para aprender, não esquecendo o que é humanidade. É o que me dá vontade, de na escola voltar, para ouvir e anotar, tudo o que se lê para uma mente se abrir e uma alma despertar. Uma semente plantar, um jardim ser, uma flor se abrir, um amor acontecer, um encontro no lugar, uma memória se ter. Lição redigida no brochurão, enigmas da vida que escrevo em linhas na sua mão, cócegas que faço a ti para rir de montão. Essa sensação na barriga é paixão. Bem sei, Menina, o quão.

Fim de expediente, movimento que se faz, hora de partir da cidade. Muito aprendi, linhas lidas e criadas, vivência apaixonada, desorientação que me levou aos lugares de onde não mais saí. Deixei os livros na biblioteca, o conhecimento na mente dela, e um sentimento em seu coração, além do desejo de voltar. Adormeci, enfim, não entendendo muito o fim, sendo teimosamente igual como no início, pergunta de criança. Esperança de tudo repetir, uma chance que poderia vir a mim, deuses que queriam formar o discípulo para um mestre ser. Um menino mais uma vez para nascer e se divertir novamente na estranha força da vida, para reencontrar tudo como se fosse da primeira vez. Alguém que teria a sabedoria de encontrar a novidade no vivido, abrindo o caderno, a mente e o coração para se viver sem qualquer desperdício. Alguém que caminharia pelas pedras da cidade sentindo as águas da tempestade, sentindo-as novamente. Alguém que entenderia o aprendizado caminhando ao seu lado, atribuindo um significado, um conceito, uma ideia, se sempre houver, ao fim e durante a jornada, um Você.

Pois na incerteza da vida, a certeza que se forma é o sentido de existir e viver um Você.

 

Head Over Heels, de Tears fo Fears - trilha sonora de Com Você.

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